26.4.12

As Cinematecas e a Preservação de Filmes


Em meu comentário mais recente – “A Cultura da Preservação de Filmes” – publicado no blog do Cineclube Natal em 14 de abril de 2012 - comentei sobre algumas pessoas e entidades que têm tido um papel importante para a preservação de filmes. Essa é uma tarefa árdua, demorada e custosa e que exige uma atenção permanente para que não se perca de forma definitiva o patrimônio acumulado nestes pouco mais de 100 anos da existência do cinema. Uma dessas pessoas, que tem um fascínio impressionante pelo cinema, é Martin Scorcese, como já dissemos. Ele mesmo, na direção de sua fundação (The Film Foundation) declara a quem quiser ouvir (e melhor, escutar!!): “... metade de todos os filmes americanos feitos antes de 1950 e mais de 90% dos filmes feitos antes de 1929 estão perdidos para sempre...”. Imaginem a situação no Brasil. Por isso mesmo a preservação e restauração dos filmes “sobreviventes”, parte deles genuinamente obras de arte, outros, registros históricos, mas todos representações essenciais de nossa cultura, TÊM que sobreviver para as gerações futuras.
            Há dois comentários recentes que são importantes para que se entre nessa discussão da preservação de filmes. Um deles, de Rafael de Luna, resultado da participação na mesa de debate “Memória e Preservação do Audiovisual Brasileiro Hoje”, que foi parte do V Encontro de Comunicação Contemporânea – 2º. Simpósio de Estudos de Cinema e Audiovisual, que aconteceu na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, realizada no dia 23 de setembro de 2010. O comentário foi publicado em 31 de março de 2011 no blog Preservação Audiovisual (preservacaoaudiovisual.blogspot.com.br/2011/03/cinematecas-e-universidades.html). Rafael de Luna escreve como pesquisador de Cinema. Nesse sentido ele afirma que “... o ofício de pesquisador, voltado para o estudo da memória e construção da História, está indissociavelmente ligado ao trabalho de preservação, de conservação dos rastros e traços de um passado que subsidiam necessariamente a pesquisa...”. Duas entidades brasileiras trabalham há tempos nessa perspectiva: a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema – SOCINE e a ABPA - Associação Brasileira de Preservação do Audiovisual.
Mesmo com o auxílio dessas entidades, e de cinematecas importantes como a antiga Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, e a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, a relação entre Cinematecas e Universidades também se presta para a defesa da necessidade de uma política descentralizadora para a preservação audiovisual no Brasil. Cada vez mais se defende a regionalização e a criação de novas universidades (de preferência públicas) fora das regiões tradicionalmente mais desenvolvidas economicamente do país. Do mesmo modo é necessária a expansão e regionalização dos arquivos de filmes e das atividades de preservação talvez associadas, por que não, como pergunta Rafael de Luna, às próprias universidades. Ainda assim, voltaremos mais à frente, a destacar o papel importantíssimo da Cinemateca Brasileira para a preservação dos filmes brasileiros.
O segundo artigo, de Rudá de Andrade, mesmo que datado de maio de 1961, conserva uma atualidade muito grande em função de suas reflexões. O texto foi colocado pelo mesmo Rafael de Luna, da tradução efetuada por Fausto Douglas Correa Júnior, em 2006, do texto original de Rudá, escrito em francês e apresentado na Mesa-redonda Internacional sobre Cinema na América Latina. O texto tem o título de “A Ação dos Cineclubes e das Cinematecas na América Latina para o Desenvolvimento da Cultura Cinematográfica”. A mesa-redonda aconteceu, na Itália, em Santa Margherita-Ligure, de 25 a 27 de maio de 1961. Rudá era, à época, conservador-adjunto da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O texto é importante por se tratar de um histórico sobre as atividades dos cineclubes no Brasil (e na América Latina também), sobretudo no contexto da criação das primeiras cinematecas no país. Ele foi escrito justamente num momento de ampliação e efervescência do circuito cineclubístico e da cultura cinefílica no início dos anos 1960 (infelizmente, de tudo que ele colocava ali, praticamente tudo foi perdido, com o estrangulamento posterior do movimento cineclubístico, movimento este só retomado no início dos anos 2.000).
Feita esta longa introdução, voltamos à questão das cinematecas e de seu papel na coleta, preservação e restauro de filmes. Hoje há, pelo menos, cerca de 150 cinematecas e organizações cinematográficas espalhadas pelo mundo, em 77 países, com diferentes densidades dependendo do continente focado. Algumas são de grande importância e exercem um papel extraordinário. Como aquelas destacadas no artigo anterior: a Scuola Nazionale de Cinema, o Centro Sperimentale di Cinematografia, a Cineteca Nazionale, e a Cinemateca de Bolonha, todas na Itália, e The Film Foundation, nos EUA. Há ainda a Federacão Internacional de Arquivos Fílmicos (Fédération Internationale des Archives du Film - FIAF), fundada em Paris, em 1938, congregando grande parte dessas cinematecas e organizações variadas. Podemos também enumerar outras tantas entidades, algumas de cunho mais profissional (como a Academy of Motion Picture Arts and Sciences, Screen Actors Guild of America). Perfazem mais cerca de 50 entidades que trabalham de forma variada com a cultura de preservação de filmes e/ou audiovisual.
Falei também, em meu comentário anterior, quando havia assistido recentemente a uma versão restaurada de um dos primeiros filmes de Bernardo Bertolucci – A Morte (La Commare Secca), realizado em 1962, da associação entre um estúdio comercial, a Cinecittá Studios, numa linha de ação chamada de Cinema Forever e a parceria com a The Mediaset Collection e da Scuola Nazionale de Cinema, através do Centro Sperimentale di Cinematografia, ambas da Itália.
Esse tipo de parceria parece ser um novo caminho para a restauração de filmes. Assisti há pouco tempo à versão restaurada do filme O Fim do Mundo (Finis Terrae), de Jean Epstein, realizado em 1929. Desta vez houve uma associação da Gaumont, o grande estúdio francês, e a Cinématèque Française, de Paris. A Cinemateca Francesa é, provavelmente, uma das mais antigas cinematecas do mundo. Falaremos dela em seguida.  Outro filme restaurado recentemente é Coquette, de Sam Taylor, de 1929. Desta vez a ação de restauração foi da Biblioteca do Congresso Americano, através da sua divisão específica, The Library of Congress Motion Picture Conservation Center, sediada em Dayton, Ohio. Não podemos deixar de comentar também a obra de restauração magistral do filme Limite, de Mário Peixoto, realizado em 1931. Desta vez o serviço de restauração impecável foi da Cinemateca Brasileira, para a qual também faremos um comentário breve, enquanto uma das instituições mais importantes e competentes para a realização de restauro de filmes.
A Cinématèque Française, sediada em Paris, é depositária de uma das maiores coleções de filmes, documentos e objetos relacionados com os filmes e com o cinema propriamente dito. Os arquivos começaram nos anos 1930 graças aos esforços de Henri Langlois, que permaneceu como seu diretor durante muitas décadas. Ela foi montada com o intuito específico de coletar e preservar filmes. Langlois já havia coletado um dos maiores arquivos de filmes logo no início da Segunda Guerra Mundial. Tudo foi quase perdido quando as autoridades alemãs, na França ocupada, ordenaram que se destruíssem TODOS os filmes feitos antes de 1937. Pode-se imaginar a monumental operação de disfarce e despiste que Langlois e amigos precisaram empreender para não cumprir essa ordem de total desvario.
Depois de mudanças e mais mudanças, após o término da guerra, a Cinemateca Francesa foi, finalmente, em 1951, sediada  na rue de Bercy, no 12º. “arrondissement” de Paris, onde permanece até hoje. A Biblioteca do Filme, a monumental biblioteca da Cinemateca Francesa, que aparece, inclusive, no filme de Scorcese, A Invenção de Hugo Cabret, foi criada oficialmente em 1992, para mostrar a história do cinema, a sua produção, o seu impacto e força artística é agora da própria cinemateca. Desde a sua fundação, a missão da cinemateca é a de preservar e restaurar filmes e arquivos de suas coleções. Realiza exibições de mostras e de filmes individuais permanentemente, retrospectivas completas e homenagens a cineastas, atores, produtores e técnicos de cinema. A Cinemateca reúne hoje cerca de 700 membros, pessoas físicas ou jurídicas, diretores, atores, estudiosos, críticos, cinéfilos. O Conselho da Cinemateca é composto de dezoito membros eleitos pela Assembléia Geral. A diretoria tem um mandato de quatro anos e é hoje dirigida pelo cineasta Costa-Gavras, diretor de Z, Estado de Sítio, Music Box, Missing... O Secretário-Geral é Jean Michel Arnold, sucessor de Henri Langlois e sistematicamente reeleito desde 1981.
The Library of Congress Motion Picture Conservation Center tem como missão a conservação, preservação e restauração da herança cinematográfica americana nas coleções da Library of Congress´s Motion Picture, Broadcasting and Recorded Sound Division (M/B/RS). Desde o início dos anos 1970 a Biblioteca do Congresso mantém um programa muito ativo de preservação de filmes. É o único programa atualmente nos EUA mantido primariamente com dinheiro público.
No início dos anos 1960, a Biblioteca começou a estocar a maior parte dos filmes à base de nitrato numa base da força aérea americana: Wright-Patterson Air Force Base, devido ao real perigo de combustão do nitrato. No início dos anos 1970 a biblioteca firmou projetos cooperativos com o American Film Institute (AFI) e passou a receber grandes coleções de filmes na base nitrato da maior parte dos grandes estúdios (Colúmbia, Universal, Warner Brothers, e MGM). Atualmente a conservação de filmes tendo nitrato como base, datando de 1890 até 1950, excede 33.000.000 de metros! Em Culpeper, Virginia, a Biblioteca do Congresso tem um novo centro – Packard Campus - do National Audio-Visual Conservation Center. Nele há instalações subterrâneas para a salvaguarda das coleções, alocadas em mais de 140 km de estantes, juntamente com instalações adequadas para aquisição, catalogação e preservação de todos os formatos de áudio-visual.
Importante para traçar a política de ação de todas essas entidades relacionadas com o audiovisual, tanto em termos de aquisição, catalogação, preservação e restauro, é a National Film Preservation Foundation e o National Film Preservation Board. Ele serve como um grupo público de assessoria à Biblioteca do Congresso. Ele tem 44 membros participantes, representantes da indústria cinematográfica, arquivos, pesquisadores, realizadores e demais participantes da indústria cinematográfica americana. Tem como missão principal a assessoria para traçar linhas de conduta para assegurar a sobrevivência, a conservação e manutenção de acervos para uma real disponibilização pública da herança cinematográfica americana. Há representantes da Academy of Motion Picture Arts and Science, The American Film Institute, do Director´s Guild of America (novamente Martin Scorcese se faz presente), National Society of Film Critics, Screen Actors Guild, The Writers Guild of America, entre outros.
No programa de restauração, que ocorre já há alguns anos, pode-se destacar: A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington), 1939, Relíquia Macabra ou O Falcão Maltês (The Maltese Falcon), 1941, Within Our Gates (1920), O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds Goes to Town), 1936.  
Finalmente, por dever e reconhecimento devemos destacar o trabalho meritório da Cinemateca Brasileira, já há quase 70 anos. Ela surgiu a partir de um cineclube - Clube de Cinema de São Paulo - em 1940. Seus fundadores eram jovens estudantes do curso de Filosofia da Universidade de São Paulo, destacando-se Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza, mas o Clube foi fechado pela polícia do Estado Novo. Após várias outras tentativas de se organizarem cineclubes, foi inaugurado, em 1946, o segundo Clube de Cinema de São Paulo. O seu acervo de filmes constituiu a Filmoteca do Museu de Arte  (MAM) que viria a se tornar uma das primeiras instituições de arquivos de filmes a se filiar à FIAF, a Fédération Internationale des Archives du Film, já em 1948. Em 1984, a Cinemateca foi incorporada ao governo federal como um órgão do então Ministério de Educação e Cultura (MEC). Hoje está ligada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. A Cinemateca Brasileira, com sede em São Paulo, desde 1992, ocupa o espaço do antigo Matadouro Municipal, na Vila Clementino, cedido  pela Prefeitura de São Paulo, após uma bela obra de restauração. Todos os seus edifícios históricos, datados do século XIX, foram tombados pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo.
A Cinemateca Brasileira possui o maior acervo de imagens em movimento da América Latina. Ele é formado por cerca de 200 mil rolos de filmes, que correspondem a cerca de 30 mil títulos. São obras de ficção, documentários, cinejornais, filmes publicitários e registros familiares, nacionais e estrangeiros, produzidos desde 1895. Parte de seu imenso acervo também está em nitrato de celulose, exigindo cuidados especiais. Em termos de ação, a cinemateca trabalha nas linhas de restauração, conservação e documentação, além de uma intensa programação de exibição de filmes ao público em geral.
Em termos de restauração, desde 1978, a Cinemateca Brasileira possui um dos melhores laboratórios da América Latina, que foi reconhecido pela FIAF, inclusive, como um exemplo para as cinematecas latino-americanas. Dentre as suas atividades permanentes, está a restauração de filmes em avançado estado de deterioração e a transferência de materiais em suporte de nitrocelulose para suportes mais estáveis e seguros. Dentre os seus projetos mais destacados estão a restauração analógica do filme Limite, do Mário Peixoto, como falamos acima, a restauração digital da filmografia de Joaquim Pedro de Andrade, dos filmes da Cinédia e do acervo de Glauber Rocha. Em termos de conservação, a Cinemateca conserva arquivos de matrizes, arquivo de filmes em nitrato de celulose, filmes em adiantado estado de deterioração e faz cópias de filmes para difusão.
Como parte integrante da Cinemateca está o seu Centro de Documentação e Pesquisa. Ele é formado por quatro setores: biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes (à semelhança da Biblioteca do Filme da Cinemateca Francesa), de Arquivos Pessoais e Institucionais, do Laboratório Fotográfico, e da área de pesquisa propriamente dita (como o Anuário do Cinema Brasileiro e a Filmografia Brasileira). Seu acervo, constituído desde 1958, é formado por diferentes conjuntos documentais referentes à cultura cinematográfica.
Martin Scorsese
Quero terminar com uma frase de Martin Scorcese posta na página de abertura do “site” de sua Fundação. Em tradução livre, sintetiza de maneira feliz a obrigação que todos deveríamos ter com o patrimônio cinematográfico mundial e nacional: “... filmes tocam nossos corações, e despertam nossa visão, e mudam a maneira como vemos as coisas. Eles levam-nos a outros lugares. Eles abrem portas e mentes. Filmes são as memórias de nossas vidas. Precisamos mantê-los vivos... 

Por Nelson Marques
nmarquesnel@gmail.com

14.4.12

A Cultura da Preservação de Filmes

Por Nelson Marques
Cineclube Natal, Conselho Nacional de Cineclubes,

Nudict, Museu Câmara Cascudo, UFRN

nmarquesnel@gmail.com

Cena de "Viagem à Lua", de George Mèliés

O fascínio de Martin Scorcese pelo cinema aparece em várias frentes. Quem viu seu último filme – A Invenção de Hugo Cabret -, agora em 2012, pode testemunhar isso. O filme é uma declaração de amor ao cinema, aos seus filmes e aos seus precursores. No caso, o filme é Viagem à Lua, realizado em 1902 e o seu realizador e diretor, George Méliès.

Scorcese fez um filme-homenagem a Méliès e ao seu filme mais importante – Viagem à Lua -. Num roteiro inteligente e bem cuidado, é mostrado, inclusive, partes da versão colorida do filme, uma obra extraordinária de restauração e que teve uma contribuição importante de Scorcese, como cinéfilo.

Viagem à Lua foi inteiramente restaurado em 2010. Um trabalho de paciência, cuidado extremo, e custoso. Custo este bancado por diversas instituições e por Martin Scorcese por trás de tudo.

Scorcese se interessa por cinema desde criança. O fascínio de sua carreira, tal como o dos seus filmes, é o de uma parábola do próprio cinema depois da Época de Ouro na realização americana. Quem afirma isso é David Thompson e Ian Christie, organizadores do livro Scorcese on Scorcese, de 1989 (tenho em mãos a versão Scorcese por Scorcese, da Edições 70, Lisboa, de 1991).

Scorcese surgiu demasiado tarde para pertencer aos grandes movimentos europeus do neo-realismo italiano, ou à nouvelle-vague francesa, já que ele nasceu em 1942 em Queens, New York City, New York. Menos ainda ao sistema de estúdios de Hollywood, o qual tinha criado os seus próprios heróis. Tanto a sua origem (seu nome de batismo é Martin Marcantonio Luciano Scorcese), quanto o seu local de nascimento (Queens, NY, EUA), e sua história de formação,  criaram as condições para o surgimento dele e de outras  personalidades ímpares para o cinema americano. Teve, ainda, a sorte de ter feito parte da primeira geração americana de estudantes de cinema.

Eles foram tanto inspirados pelo que estudaram, como pelo que estava a acontecer à sua volta no princípio dos anos sessenta do século passado. Parte deles permaneceu ligada nos anos à frente, tanto pelos seus filmes, quanto pelo interesse pela história do cinema, ou mesmo pelos interesses além do cinema. Por exemplo, a preocupação com a história do cinema, americano e mundial, e maneiras de preservá-la.

O interesse de Scorcese pelo cinema pode ser atestado pelos seus 53 filmes, entre ficção e documentários, realizados até agora. São dignos de nota três documentários realizados por Scorcese ou sobre ele. O primeiro deles – A Personal Journey with Martin Scorcese Through American Movies, realizado para a TV, em 1995, comemora os 100 anos do cinema. De um documentário de 60 minutos, como combinado em contrato, resultou uma obra de 246 minutos apresentando uma visão ímpar sobre a história do cinema americano. Outro foi My Voyage to Italy, realizado em 1999, revelando em 225 minutos, a admiração e o profundo respeito e conhecimento da cinematografia italiana (que tanto o influenciou). Mais recentemente, em 2005, Richard Schickel dirigiu um documentário biográfico para a TV, com 86 minutos, sobre Scorcese – Scorcese on Scorcese -, mais ou menos nos mesmos moldes do livro homônimo publicado em 1989. Nele, Scorcese discorre sobre a sua vida e sobre os seus filmes, além da preocupação com a questão da preservação dos filmes, um objeto ainda muito volátil.

Já em seu livro de 1989, Scorcese relata que, mesmo estando extremamente envolvido com a controvérsia e lançamento de seu filme A Última Tentacão de Cristo, de 1988, ele encontrou tempo para deflagrar uma campanha com o objetivo de alertar a indústria do cinema para o problema da deterioração dos filmes coloridos. Esta ação levou com que a Eastman Kodak produzisse películas mais resistentes e inalteráveis, assim como levantou a questão de se procurar métodos de preservação e manutenção de filmes. Voltaremos a este ponto um pouco mais adiante, destacando algumas ações específicas de Scorcese e de seus amigos.

Recentemente assisti a uma versão restaurada de um dos primeiros filmes de Bernardo Bertolucci – A Morte (La Commare Secca), realizado em 1962. O que me chamou a atenção, além da qualidade já anunciada de um dos grandes diretores de nossa época, foram os créditos na apresentação do filme. A restauração do filme partiu da ação de um estúdio comercial, a Cinecittá Studios, numa linha de ação chamada de Cinema Forever. Esta ação é uma parceria do próprio estúdio, da The Mediaset Collection e da Scuola Nazionale de Cinema, através do Centro Sperimentale di Cinematografia, ambas da Itália.

O Centro Experimental de Cinematografia, através do Arquivo Nacional de Cinema (Cineteca Nazionale) tem um trabalho permanente de preservação e restauro do patrimônio do cinema italiano. Juntamente com o trabalho de conservação do patrimônio cinematográfico, o Arquivo é muito ativo na preservação e restauração de filmes. A cada ano, cerca de 250 km de película são preservados e reimpressos. Isso porque, por mais que se cuide, o filme é, de fato, sujeito inevitavelmente a processos de deterioração (na maior parte das vezes irreversível).

O Arquivo Nacional de Cinema, juntamente com a Cinemateca de Bolonha,   é um dos maiores arquivos de filmes da Europa. São mais de 100.000 filmes! Além disso, ambas as instituições combinam o interesse pela atividade de preservação, conservação e restauro, com a importante atividade associada da difusão cultural e exibição.

Curiosamente, a Cinemateca de Bolonha, apesar de sua importância como instituição há anos, apareceu recentemente na mídia, tanto em função do filme do Scorcese, quanto pela cópia restaurada (e colorida) do filme Viagem à Lua, do Méliès, também mostrada no filme.

O filme Viagem à Lua, um dos clássicos de ficção científica da era do cinema mudo, havia sido dado como perdido durante muitos anos. Isso é até comentado no filme do Scorcese. A cópia, encontrada e restaurada, foi apresentada em 2011, como um dos eventos importantes do Festival de Cinema de Cannes. Ela tem agora 14 minutos de duração.

O interessante da história é que a versão restaurada apresentada, o foi a partir de uma doação anônima, acontecida no início dos anos 90 do século passado, justamente à Cinemateca de Bolonha. A cópia já colorida do negativo foi entregue numa caixa com o filme completamente picotado, quase que fotograma por fotograma. O nitrato da película estava cristalizado, os pedaços recebidos formavam um grande “quebra-cabeças”, com cerca de 1.300 “pedaços” (no caso auspicioso, fotogramas). Pode-se apenas imaginar o trabalho monumental de restauro!

A versão restaurada do filme Viagem à Lua foi apresentada 109 anos depois, em 2011, como comentamos, num evento festivo e historicamente importante, com a presença de Martin Scorcese, numa sessão especial, onde a atração principal era o filme mais recente de Woody Allen (Meia-Noite em Paris), amigo e parceiro de Scorcese. O filme teve ainda uma trilha especialmente composta (grupo musical Air), o que permitiu fazer uma conexão do público de hoje com as imagens do passado. Scorcese participou ativamente do projeto através de sua fundação para a preservação de filmes (The Film Foundation).

 Voltando à Cinemateca de Bolonha, que foi fundada em 1962, é importante destacar que ela é um centro de pesquisa cinematográfica das mais importantes da Itália e do mundo. Ela é “dominada” pela idéia de que o futuro será a melhor publicidade do passado, mas somente mais recentemente a cultura da preservação começou a fazer o seu caminho entre um público mais amplo. Filmes como A Invenção de Hugo Cabret e O Artista, ambos deste ano, têm e terão um papel importante nessa linha. Com isso, uma nova atenção à história do cinema, com a descoberta da extraordinária vitalidade do patrimônio cinematográfico, e a (re)valorização de seus valores artísticos, estético e até mesmo comercial, poderá ser dada. A partir deste ponto de vista, a restauração não é apenas a ferramenta mais valiosa para preservar a visão do filme a tempo, mas também uma força para  reiniciá-los em um diálogo com novos olhos.

A Cinemateca de Bolonha alia a ação de seu centro de pesquisa, de ter um patrimônio à disposição de todos, e de ser uma instituição que dá garantia de preservação e divulgação. Ela apresenta, ainda, outras ações como o Ritrovata Imagem, um laboratório altamente especializado em restauração de filmes por técnicas fotoquímicas e digitais, a World Cinema Foundation  (nascido da vontade, mais uma vez, de Martin Scorcese), que cuida da restauração de filmes do terceiro mundo, ou aonde faltar tecnologia e dinheiro necessários ao restauro de obras importantes, e a Escola de Verão de Cinema Restaurado (uma escola de restauração com o apoio da Fédération Internationale des Archives du Film – FIAF, da Association des Cinemateques Européennes – ACE e da União Européia MEDIA).

Finalizando, voltamos a outra ação de Martin Scorcese, esta de cunho bastante pessoal. Trata-se da instituição The Film Foundation, uma organização constituída em 1990, sem fins lucrativos, cujo “slogan” já diz de sua preocupação e ação: Filmakers for Film Preservation. A fundação tem como um de seus objetivos “... a proteção e preservação da história dos filmes, fornecendo apoio financeiro anual para projetos de preservação e restauração de filmes de arquivos diversos...” (até o momento, a fundação já ajudou na preservação de mais de 500 filmes). A fundação tem como objetivo também “... a criação de programas educativos inovadores – The Story of Movies – que é um curriculum interdisciplinar planejado para ensinar estudantes acerca da significância cultural, artística e histórica dos filmes...”. Fazem, ou fizeram parte de sua direção: Martin Scorcese, Woody Allen, Robert Altman (in memorian), Francis Ford Coppola, Clint Eastwood, Stanley Kubrick (in memorian), George Lucas, Sydney Pollack (in memorian), Robert Redford, Steven Spielberg, Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, Curtis Hanson, Peter Jackson, Ang Lee e Alexander Payne. Digno de nota é a campanha permanente de recolhimento de contribuições por parte do público: “1 frame/1 dollar”, onde você pode escolher, dentre os vários projetos de restauração em execução, qual, ou quantos fotogramas você quer colaborar (e contribuir) para ser(erem) restaurados! Chamo a atenção, apenas como ilustração, para alguns desses projetos de restauração: Two for the Road, 1976, Stanley Donen, The Ring, 1927, Alfred Hitchcock, Richard III, 1955, Laurence Olivier, All That Jazz, 1979, Bob Fosse... Atrativo, não?