26.4.12

As Cinematecas e a Preservação de Filmes


Em meu comentário mais recente – “A Cultura da Preservação de Filmes” – publicado no blog do Cineclube Natal em 14 de abril de 2012 - comentei sobre algumas pessoas e entidades que têm tido um papel importante para a preservação de filmes. Essa é uma tarefa árdua, demorada e custosa e que exige uma atenção permanente para que não se perca de forma definitiva o patrimônio acumulado nestes pouco mais de 100 anos da existência do cinema. Uma dessas pessoas, que tem um fascínio impressionante pelo cinema, é Martin Scorcese, como já dissemos. Ele mesmo, na direção de sua fundação (The Film Foundation) declara a quem quiser ouvir (e melhor, escutar!!): “... metade de todos os filmes americanos feitos antes de 1950 e mais de 90% dos filmes feitos antes de 1929 estão perdidos para sempre...”. Imaginem a situação no Brasil. Por isso mesmo a preservação e restauração dos filmes “sobreviventes”, parte deles genuinamente obras de arte, outros, registros históricos, mas todos representações essenciais de nossa cultura, TÊM que sobreviver para as gerações futuras.
            Há dois comentários recentes que são importantes para que se entre nessa discussão da preservação de filmes. Um deles, de Rafael de Luna, resultado da participação na mesa de debate “Memória e Preservação do Audiovisual Brasileiro Hoje”, que foi parte do V Encontro de Comunicação Contemporânea – 2º. Simpósio de Estudos de Cinema e Audiovisual, que aconteceu na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, realizada no dia 23 de setembro de 2010. O comentário foi publicado em 31 de março de 2011 no blog Preservação Audiovisual (preservacaoaudiovisual.blogspot.com.br/2011/03/cinematecas-e-universidades.html). Rafael de Luna escreve como pesquisador de Cinema. Nesse sentido ele afirma que “... o ofício de pesquisador, voltado para o estudo da memória e construção da História, está indissociavelmente ligado ao trabalho de preservação, de conservação dos rastros e traços de um passado que subsidiam necessariamente a pesquisa...”. Duas entidades brasileiras trabalham há tempos nessa perspectiva: a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema – SOCINE e a ABPA - Associação Brasileira de Preservação do Audiovisual.
Mesmo com o auxílio dessas entidades, e de cinematecas importantes como a antiga Cinemateca do MAM, no Rio de Janeiro, e a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, a relação entre Cinematecas e Universidades também se presta para a defesa da necessidade de uma política descentralizadora para a preservação audiovisual no Brasil. Cada vez mais se defende a regionalização e a criação de novas universidades (de preferência públicas) fora das regiões tradicionalmente mais desenvolvidas economicamente do país. Do mesmo modo é necessária a expansão e regionalização dos arquivos de filmes e das atividades de preservação talvez associadas, por que não, como pergunta Rafael de Luna, às próprias universidades. Ainda assim, voltaremos mais à frente, a destacar o papel importantíssimo da Cinemateca Brasileira para a preservação dos filmes brasileiros.
O segundo artigo, de Rudá de Andrade, mesmo que datado de maio de 1961, conserva uma atualidade muito grande em função de suas reflexões. O texto foi colocado pelo mesmo Rafael de Luna, da tradução efetuada por Fausto Douglas Correa Júnior, em 2006, do texto original de Rudá, escrito em francês e apresentado na Mesa-redonda Internacional sobre Cinema na América Latina. O texto tem o título de “A Ação dos Cineclubes e das Cinematecas na América Latina para o Desenvolvimento da Cultura Cinematográfica”. A mesa-redonda aconteceu, na Itália, em Santa Margherita-Ligure, de 25 a 27 de maio de 1961. Rudá era, à época, conservador-adjunto da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. O texto é importante por se tratar de um histórico sobre as atividades dos cineclubes no Brasil (e na América Latina também), sobretudo no contexto da criação das primeiras cinematecas no país. Ele foi escrito justamente num momento de ampliação e efervescência do circuito cineclubístico e da cultura cinefílica no início dos anos 1960 (infelizmente, de tudo que ele colocava ali, praticamente tudo foi perdido, com o estrangulamento posterior do movimento cineclubístico, movimento este só retomado no início dos anos 2.000).
Feita esta longa introdução, voltamos à questão das cinematecas e de seu papel na coleta, preservação e restauro de filmes. Hoje há, pelo menos, cerca de 150 cinematecas e organizações cinematográficas espalhadas pelo mundo, em 77 países, com diferentes densidades dependendo do continente focado. Algumas são de grande importância e exercem um papel extraordinário. Como aquelas destacadas no artigo anterior: a Scuola Nazionale de Cinema, o Centro Sperimentale di Cinematografia, a Cineteca Nazionale, e a Cinemateca de Bolonha, todas na Itália, e The Film Foundation, nos EUA. Há ainda a Federacão Internacional de Arquivos Fílmicos (Fédération Internationale des Archives du Film - FIAF), fundada em Paris, em 1938, congregando grande parte dessas cinematecas e organizações variadas. Podemos também enumerar outras tantas entidades, algumas de cunho mais profissional (como a Academy of Motion Picture Arts and Sciences, Screen Actors Guild of America). Perfazem mais cerca de 50 entidades que trabalham de forma variada com a cultura de preservação de filmes e/ou audiovisual.
Falei também, em meu comentário anterior, quando havia assistido recentemente a uma versão restaurada de um dos primeiros filmes de Bernardo Bertolucci – A Morte (La Commare Secca), realizado em 1962, da associação entre um estúdio comercial, a Cinecittá Studios, numa linha de ação chamada de Cinema Forever e a parceria com a The Mediaset Collection e da Scuola Nazionale de Cinema, através do Centro Sperimentale di Cinematografia, ambas da Itália.
Esse tipo de parceria parece ser um novo caminho para a restauração de filmes. Assisti há pouco tempo à versão restaurada do filme O Fim do Mundo (Finis Terrae), de Jean Epstein, realizado em 1929. Desta vez houve uma associação da Gaumont, o grande estúdio francês, e a Cinématèque Française, de Paris. A Cinemateca Francesa é, provavelmente, uma das mais antigas cinematecas do mundo. Falaremos dela em seguida.  Outro filme restaurado recentemente é Coquette, de Sam Taylor, de 1929. Desta vez a ação de restauração foi da Biblioteca do Congresso Americano, através da sua divisão específica, The Library of Congress Motion Picture Conservation Center, sediada em Dayton, Ohio. Não podemos deixar de comentar também a obra de restauração magistral do filme Limite, de Mário Peixoto, realizado em 1931. Desta vez o serviço de restauração impecável foi da Cinemateca Brasileira, para a qual também faremos um comentário breve, enquanto uma das instituições mais importantes e competentes para a realização de restauro de filmes.
A Cinématèque Française, sediada em Paris, é depositária de uma das maiores coleções de filmes, documentos e objetos relacionados com os filmes e com o cinema propriamente dito. Os arquivos começaram nos anos 1930 graças aos esforços de Henri Langlois, que permaneceu como seu diretor durante muitas décadas. Ela foi montada com o intuito específico de coletar e preservar filmes. Langlois já havia coletado um dos maiores arquivos de filmes logo no início da Segunda Guerra Mundial. Tudo foi quase perdido quando as autoridades alemãs, na França ocupada, ordenaram que se destruíssem TODOS os filmes feitos antes de 1937. Pode-se imaginar a monumental operação de disfarce e despiste que Langlois e amigos precisaram empreender para não cumprir essa ordem de total desvario.
Depois de mudanças e mais mudanças, após o término da guerra, a Cinemateca Francesa foi, finalmente, em 1951, sediada  na rue de Bercy, no 12º. “arrondissement” de Paris, onde permanece até hoje. A Biblioteca do Filme, a monumental biblioteca da Cinemateca Francesa, que aparece, inclusive, no filme de Scorcese, A Invenção de Hugo Cabret, foi criada oficialmente em 1992, para mostrar a história do cinema, a sua produção, o seu impacto e força artística é agora da própria cinemateca. Desde a sua fundação, a missão da cinemateca é a de preservar e restaurar filmes e arquivos de suas coleções. Realiza exibições de mostras e de filmes individuais permanentemente, retrospectivas completas e homenagens a cineastas, atores, produtores e técnicos de cinema. A Cinemateca reúne hoje cerca de 700 membros, pessoas físicas ou jurídicas, diretores, atores, estudiosos, críticos, cinéfilos. O Conselho da Cinemateca é composto de dezoito membros eleitos pela Assembléia Geral. A diretoria tem um mandato de quatro anos e é hoje dirigida pelo cineasta Costa-Gavras, diretor de Z, Estado de Sítio, Music Box, Missing... O Secretário-Geral é Jean Michel Arnold, sucessor de Henri Langlois e sistematicamente reeleito desde 1981.
The Library of Congress Motion Picture Conservation Center tem como missão a conservação, preservação e restauração da herança cinematográfica americana nas coleções da Library of Congress´s Motion Picture, Broadcasting and Recorded Sound Division (M/B/RS). Desde o início dos anos 1970 a Biblioteca do Congresso mantém um programa muito ativo de preservação de filmes. É o único programa atualmente nos EUA mantido primariamente com dinheiro público.
No início dos anos 1960, a Biblioteca começou a estocar a maior parte dos filmes à base de nitrato numa base da força aérea americana: Wright-Patterson Air Force Base, devido ao real perigo de combustão do nitrato. No início dos anos 1970 a biblioteca firmou projetos cooperativos com o American Film Institute (AFI) e passou a receber grandes coleções de filmes na base nitrato da maior parte dos grandes estúdios (Colúmbia, Universal, Warner Brothers, e MGM). Atualmente a conservação de filmes tendo nitrato como base, datando de 1890 até 1950, excede 33.000.000 de metros! Em Culpeper, Virginia, a Biblioteca do Congresso tem um novo centro – Packard Campus - do National Audio-Visual Conservation Center. Nele há instalações subterrâneas para a salvaguarda das coleções, alocadas em mais de 140 km de estantes, juntamente com instalações adequadas para aquisição, catalogação e preservação de todos os formatos de áudio-visual.
Importante para traçar a política de ação de todas essas entidades relacionadas com o audiovisual, tanto em termos de aquisição, catalogação, preservação e restauro, é a National Film Preservation Foundation e o National Film Preservation Board. Ele serve como um grupo público de assessoria à Biblioteca do Congresso. Ele tem 44 membros participantes, representantes da indústria cinematográfica, arquivos, pesquisadores, realizadores e demais participantes da indústria cinematográfica americana. Tem como missão principal a assessoria para traçar linhas de conduta para assegurar a sobrevivência, a conservação e manutenção de acervos para uma real disponibilização pública da herança cinematográfica americana. Há representantes da Academy of Motion Picture Arts and Science, The American Film Institute, do Director´s Guild of America (novamente Martin Scorcese se faz presente), National Society of Film Critics, Screen Actors Guild, The Writers Guild of America, entre outros.
No programa de restauração, que ocorre já há alguns anos, pode-se destacar: A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington), 1939, Relíquia Macabra ou O Falcão Maltês (The Maltese Falcon), 1941, Within Our Gates (1920), O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds Goes to Town), 1936.  
Finalmente, por dever e reconhecimento devemos destacar o trabalho meritório da Cinemateca Brasileira, já há quase 70 anos. Ela surgiu a partir de um cineclube - Clube de Cinema de São Paulo - em 1940. Seus fundadores eram jovens estudantes do curso de Filosofia da Universidade de São Paulo, destacando-se Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e Souza, mas o Clube foi fechado pela polícia do Estado Novo. Após várias outras tentativas de se organizarem cineclubes, foi inaugurado, em 1946, o segundo Clube de Cinema de São Paulo. O seu acervo de filmes constituiu a Filmoteca do Museu de Arte  (MAM) que viria a se tornar uma das primeiras instituições de arquivos de filmes a se filiar à FIAF, a Fédération Internationale des Archives du Film, já em 1948. Em 1984, a Cinemateca foi incorporada ao governo federal como um órgão do então Ministério de Educação e Cultura (MEC). Hoje está ligada à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. A Cinemateca Brasileira, com sede em São Paulo, desde 1992, ocupa o espaço do antigo Matadouro Municipal, na Vila Clementino, cedido  pela Prefeitura de São Paulo, após uma bela obra de restauração. Todos os seus edifícios históricos, datados do século XIX, foram tombados pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo.
A Cinemateca Brasileira possui o maior acervo de imagens em movimento da América Latina. Ele é formado por cerca de 200 mil rolos de filmes, que correspondem a cerca de 30 mil títulos. São obras de ficção, documentários, cinejornais, filmes publicitários e registros familiares, nacionais e estrangeiros, produzidos desde 1895. Parte de seu imenso acervo também está em nitrato de celulose, exigindo cuidados especiais. Em termos de ação, a cinemateca trabalha nas linhas de restauração, conservação e documentação, além de uma intensa programação de exibição de filmes ao público em geral.
Em termos de restauração, desde 1978, a Cinemateca Brasileira possui um dos melhores laboratórios da América Latina, que foi reconhecido pela FIAF, inclusive, como um exemplo para as cinematecas latino-americanas. Dentre as suas atividades permanentes, está a restauração de filmes em avançado estado de deterioração e a transferência de materiais em suporte de nitrocelulose para suportes mais estáveis e seguros. Dentre os seus projetos mais destacados estão a restauração analógica do filme Limite, do Mário Peixoto, como falamos acima, a restauração digital da filmografia de Joaquim Pedro de Andrade, dos filmes da Cinédia e do acervo de Glauber Rocha. Em termos de conservação, a Cinemateca conserva arquivos de matrizes, arquivo de filmes em nitrato de celulose, filmes em adiantado estado de deterioração e faz cópias de filmes para difusão.
Como parte integrante da Cinemateca está o seu Centro de Documentação e Pesquisa. Ele é formado por quatro setores: biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes (à semelhança da Biblioteca do Filme da Cinemateca Francesa), de Arquivos Pessoais e Institucionais, do Laboratório Fotográfico, e da área de pesquisa propriamente dita (como o Anuário do Cinema Brasileiro e a Filmografia Brasileira). Seu acervo, constituído desde 1958, é formado por diferentes conjuntos documentais referentes à cultura cinematográfica.
Martin Scorsese
Quero terminar com uma frase de Martin Scorcese posta na página de abertura do “site” de sua Fundação. Em tradução livre, sintetiza de maneira feliz a obrigação que todos deveríamos ter com o patrimônio cinematográfico mundial e nacional: “... filmes tocam nossos corações, e despertam nossa visão, e mudam a maneira como vemos as coisas. Eles levam-nos a outros lugares. Eles abrem portas e mentes. Filmes são as memórias de nossas vidas. Precisamos mantê-los vivos... 

Por Nelson Marques
nmarquesnel@gmail.com

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