Por Nelson Marques
Cineclube Natal, Conselho Nacional de Cineclubes,
Nudict, Museu Câmara Cascudo, UFRN
nmarquesnel@gmail.com
Cena de "Viagem à Lua", de George Mèliés |
O fascínio de Martin Scorcese pelo cinema aparece em várias frentes. Quem viu seu último filme – A Invenção de Hugo Cabret -, agora em 2012, pode testemunhar isso. O filme é uma declaração de amor ao cinema, aos seus filmes e aos seus precursores. No caso, o filme é Viagem à Lua, realizado em 1902 e o seu realizador e diretor, George Méliès.
Scorcese surgiu demasiado tarde para pertencer aos grandes movimentos europeus do neo-realismo italiano, ou à nouvelle-vague francesa, já que ele nasceu em 1942 em Queens, New York City, New York. Menos ainda ao sistema de estúdios de Hollywood, o qual tinha criado os seus próprios heróis. Tanto a sua origem (seu nome de batismo é Martin Marcantonio Luciano Scorcese), quanto o seu local de nascimento (Queens, NY, EUA), e sua história de formação, criaram as condições para o surgimento dele e de outras personalidades ímpares para o cinema americano. Teve, ainda, a sorte de ter feito parte da primeira geração americana de estudantes de cinema.
Scorcese fez um filme-homenagem a Méliès e ao seu filme mais importante – Viagem à Lua -. Num roteiro inteligente e bem cuidado, é mostrado, inclusive, partes da versão colorida do filme, uma obra extraordinária de restauração e que teve uma contribuição importante de Scorcese, como cinéfilo.
Viagem à Lua foi inteiramente restaurado em 2010. Um trabalho de paciência, cuidado extremo, e custoso. Custo este bancado por diversas instituições e por Martin Scorcese por trás de tudo.
Scorcese se interessa por cinema desde criança. O fascínio de sua carreira, tal como o dos seus filmes, é o de uma parábola do próprio cinema depois da Época de Ouro na realização americana. Quem afirma isso é David Thompson e Ian Christie, organizadores do livro Scorcese on Scorcese, de 1989 (tenho em mãos a versão Scorcese por Scorcese, da Edições 70, Lisboa, de 1991).
Scorcese surgiu demasiado tarde para pertencer aos grandes movimentos europeus do neo-realismo italiano, ou à nouvelle-vague francesa, já que ele nasceu em 1942 em Queens, New York City, New York. Menos ainda ao sistema de estúdios de Hollywood, o qual tinha criado os seus próprios heróis. Tanto a sua origem (seu nome de batismo é Martin Marcantonio Luciano Scorcese), quanto o seu local de nascimento (Queens, NY, EUA), e sua história de formação, criaram as condições para o surgimento dele e de outras personalidades ímpares para o cinema americano. Teve, ainda, a sorte de ter feito parte da primeira geração americana de estudantes de cinema.
Eles foram tanto inspirados pelo que estudaram, como pelo que estava a acontecer à sua volta no princípio dos anos sessenta do século passado. Parte deles permaneceu ligada nos anos à frente, tanto pelos seus filmes, quanto pelo interesse pela história do cinema, ou mesmo pelos interesses além do cinema. Por exemplo, a preocupação com a história do cinema, americano e mundial, e maneiras de preservá-la.
O interesse de Scorcese pelo cinema pode ser atestado pelos seus 53 filmes, entre ficção e documentários, realizados até agora. São dignos de nota três documentários realizados por Scorcese ou sobre ele. O primeiro deles – A Personal Journey with Martin Scorcese Through American Movies, realizado para a TV, em 1995, comemora os 100 anos do cinema. De um documentário de 60 minutos, como combinado em contrato, resultou uma obra de 246 minutos apresentando uma visão ímpar sobre a história do cinema americano. Outro foi My Voyage to Italy, realizado em 1999, revelando em 225 minutos, a admiração e o profundo respeito e conhecimento da cinematografia italiana (que tanto o influenciou). Mais recentemente, em 2005, Richard Schickel dirigiu um documentário biográfico para a TV, com 86 minutos, sobre Scorcese – Scorcese on Scorcese -, mais ou menos nos mesmos moldes do livro homônimo publicado em 1989. Nele, Scorcese discorre sobre a sua vida e sobre os seus filmes, além da preocupação com a questão da preservação dos filmes, um objeto ainda muito volátil.
Já em seu livro de 1989, Scorcese relata que, mesmo estando extremamente envolvido com a controvérsia e lançamento de seu filme A Última Tentacão de Cristo, de 1988, ele encontrou tempo para deflagrar uma campanha com o objetivo de alertar a indústria do cinema para o problema da deterioração dos filmes coloridos. Esta ação levou com que a Eastman Kodak produzisse películas mais resistentes e inalteráveis, assim como levantou a questão de se procurar métodos de preservação e manutenção de filmes. Voltaremos a este ponto um pouco mais adiante, destacando algumas ações específicas de Scorcese e de seus amigos.
Recentemente assisti a uma versão restaurada de um dos primeiros filmes de Bernardo Bertolucci – A Morte (La Commare Secca), realizado em 1962. O que me chamou a atenção, além da qualidade já anunciada de um dos grandes diretores de nossa época, foram os créditos na apresentação do filme. A restauração do filme partiu da ação de um estúdio comercial, a Cinecittá Studios, numa linha de ação chamada de Cinema Forever. Esta ação é uma parceria do próprio estúdio, da The Mediaset Collection e da Scuola Nazionale de Cinema, através do Centro Sperimentale di Cinematografia, ambas da Itália.
O Centro Experimental de Cinematografia, através do Arquivo Nacional de Cinema (Cineteca Nazionale) tem um trabalho permanente de preservação e restauro do patrimônio do cinema italiano. Juntamente com o trabalho de conservação do patrimônio cinematográfico, o Arquivo é muito ativo na preservação e restauração de filmes. A cada ano, cerca de 250 km de película são preservados e reimpressos. Isso porque, por mais que se cuide, o filme é, de fato, sujeito inevitavelmente a processos de deterioração (na maior parte das vezes irreversível).
O Arquivo Nacional de Cinema, juntamente com a Cinemateca de Bolonha, é um dos maiores arquivos de filmes da Europa. São mais de 100.000 filmes! Além disso, ambas as instituições combinam o interesse pela atividade de preservação, conservação e restauro, com a importante atividade associada da difusão cultural e exibição.
Curiosamente, a Cinemateca de Bolonha, apesar de sua importância como instituição há anos, apareceu recentemente na mídia, tanto em função do filme do Scorcese, quanto pela cópia restaurada (e colorida) do filme Viagem à Lua, do Méliès, também mostrada no filme.
O filme Viagem à Lua, um dos clássicos de ficção científica da era do cinema mudo, havia sido dado como perdido durante muitos anos. Isso é até comentado no filme do Scorcese. A cópia, encontrada e restaurada, foi apresentada em 2011, como um dos eventos importantes do Festival de Cinema de Cannes. Ela tem agora 14 minutos de duração.
O interessante da história é que a versão restaurada apresentada, o foi a partir de uma doação anônima, acontecida no início dos anos 90 do século passado, justamente à Cinemateca de Bolonha. A cópia já colorida do negativo foi entregue numa caixa com o filme completamente picotado, quase que fotograma por fotograma. O nitrato da película estava cristalizado, os pedaços recebidos formavam um grande “quebra-cabeças”, com cerca de 1.300 “pedaços” (no caso auspicioso, fotogramas). Pode-se apenas imaginar o trabalho monumental de restauro!
A versão restaurada do filme Viagem à Lua foi apresentada 109 anos depois, em 2011, como comentamos, num evento festivo e historicamente importante, com a presença de Martin Scorcese, numa sessão especial, onde a atração principal era o filme mais recente de Woody Allen (Meia-Noite em Paris), amigo e parceiro de Scorcese. O filme teve ainda uma trilha especialmente composta (grupo musical Air), o que permitiu fazer uma conexão do público de hoje com as imagens do passado. Scorcese participou ativamente do projeto através de sua fundação para a preservação de filmes (The Film Foundation).
Voltando à Cinemateca de Bolonha, que foi fundada em 1962, é importante destacar que ela é um centro de pesquisa cinematográfica das mais importantes da Itália e do mundo. Ela é “dominada” pela idéia de que o futuro será a melhor publicidade do passado, mas somente mais recentemente a cultura da preservação começou a fazer o seu caminho entre um público mais amplo. Filmes como A Invenção de Hugo Cabret e O Artista, ambos deste ano, têm e terão um papel importante nessa linha. Com isso, uma nova atenção à história do cinema, com a descoberta da extraordinária vitalidade do patrimônio cinematográfico, e a (re)valorização de seus valores artísticos, estético e até mesmo comercial, poderá ser dada. A partir deste ponto de vista, a restauração não é apenas a ferramenta mais valiosa para preservar a visão do filme a tempo, mas também uma força para reiniciá-los em um diálogo com novos olhos.
A Cinemateca de Bolonha alia a ação de seu centro de pesquisa, de ter um patrimônio à disposição de todos, e de ser uma instituição que dá garantia de preservação e divulgação. Ela apresenta, ainda, outras ações como o Ritrovata Imagem, um laboratório altamente especializado em restauração de filmes por técnicas fotoquímicas e digitais, a World Cinema Foundation (nascido da vontade, mais uma vez, de Martin Scorcese), que cuida da restauração de filmes do terceiro mundo, ou aonde faltar tecnologia e dinheiro necessários ao restauro de obras importantes, e a Escola de Verão de Cinema Restaurado (uma escola de restauração com o apoio da Fédération Internationale des Archives du Film – FIAF, da Association des Cinemateques Européennes – ACE e da União Européia MEDIA).
Finalizando, voltamos a outra ação de Martin Scorcese, esta de cunho bastante pessoal. Trata-se da instituição The Film Foundation, uma organização constituída em 1990, sem fins lucrativos, cujo “slogan” já diz de sua preocupação e ação: Filmakers for Film Preservation. A fundação tem como um de seus objetivos “... a proteção e preservação da história dos filmes, fornecendo apoio financeiro anual para projetos de preservação e restauração de filmes de arquivos diversos...” (até o momento, a fundação já ajudou na preservação de mais de 500 filmes). A fundação tem como objetivo também “... a criação de programas educativos inovadores – The Story of Movies – que é um curriculum interdisciplinar planejado para ensinar estudantes acerca da significância cultural, artística e histórica dos filmes...”. Fazem, ou fizeram parte de sua direção: Martin Scorcese, Woody Allen, Robert Altman (in memorian), Francis Ford Coppola, Clint Eastwood, Stanley Kubrick (in memorian), George Lucas, Sydney Pollack (in memorian), Robert Redford, Steven Spielberg, Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, Curtis Hanson, Peter Jackson, Ang Lee e Alexander Payne. Digno de nota é a campanha permanente de recolhimento de contribuições por parte do público: “1 frame/1 dollar”, onde você pode escolher, dentre os vários projetos de restauração em execução, qual, ou quantos fotogramas você quer colaborar (e contribuir) para ser(erem) restaurados! Chamo a atenção, apenas como ilustração, para alguns desses projetos de restauração: Two for the Road, 1976, Stanley Donen, The Ring, 1927, Alfred Hitchcock, Richard III, 1955, Laurence Olivier, All That Jazz, 1979, Bob Fosse... Atrativo, não?
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